Miguel Freitas: “Foi instintivo, ofereci-me para fazer o transplante”

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Miguel Freitas Fontes tem 45 anos e é um dos jogadores de polo aquático mais antigos em atividade. Mais conhecido por “Funk” no mundo das piscinas, passou pela canoagem, experimentou a natação, mas foi o polo que levou a melhor. Recentemente trocou o Fluvial Portuense pelo CDUP e foi herói no jogo da vida ao doar um rim para salvar o filho.

Começou a jogar em 1984, tinha 12 anos. Foi parar ao polo aquático por influência do amigo João Lopes. O convite para treinar surgiu da parte dele e desafiado pelo então treinador e seccionista Luís Lopes dos Santos a experimentar, gostou, percebeu que tinha jeito e daí para cá nunca mais parou.

A alcunha, “Funk”, também surgiu nessa altura, foi dada pelo irmão, mas estendeu-se ao desporto.

“A alcunha foi dada pelo meu irmão mais velho, eu andava sempre a cheirar as coisas, principalmente os protetores solares no verão e “Funk” era a onomatopeia das bandas desenhadas quando as personagens cheiravam alguma coisa. Foi uma alcunha que ficou e se mantém até hoje”, conta, em entrevista ao Chlorus.

Até ao início desta época, Miguel Freitas só tinha conhecido um clube em toda a carreira, o Fluvial Portuense. Foram mais de 30 anos ao serviço do clube de Lordelo do Ouro que terminaram com a conquista do Campeonato Nacional da 1.ª Divisão – o primeiro na história do clube –, o ponto alto da carreira. O motivo da saída? A nova equipa técnica.

“Com a chegada do novo técnico praticamente não me foi permitido treinar, nunca me explicaram o porquê, mas parece-me óbvio que o motivo foi a idade. Não era um jogador fora de série, mas acho que tinha condições para continuar a ajudar. A idade já não dá para tudo, mas durante o treino sou um elemento útil. Adoro jogar, treinar e adoro o contacto com a bola, posto isto, fiz-me à estrada. Não foi fácil, andei um bocadinho perdido, mas depois surgiu o CDUP, onde fui muito bem recebido. Não tenho qualquer arrependimento, olhar para trás não vale a pena”, explica “Funk”.

Designer gráfico de profissão, quer continuar a jogar e a treinar “o máximo de tempo possível” desde que tenha condições para tal, não impondo um limite de idade. O segredo da longevidade? “Paixão por aquilo que se faz”, sublinha.

Foi essa mesma paixão pelo desporto que passou aos três filhos, Tomás de 16, Rodrigo de 14 e Francisca de 11 anos.

Os dois rapazes jogam polo aquático, mas o pai garante que não impôs nada: “Andaram no andebol, mas têm a referência do pai e resolveram experimentar. Gostaram, ficaram viciados nisto e deixaram o andebol. Neste momento só está a jogar o mais velho, o Tomás.”

Rodrigo, o filho do meio, foi submetido a um transplante renal no passado mês de dezembro e ainda não pode praticar desporto. Sofria de insuficiência renal, uma doença degenerativa que não pode ser tratada, apenas controlada, e precisava de um rim. O pai foi o dador.

“A partir de uma certa altura ia-me deitar com aquela ansiedade”

“Este processo já se arrastava há uns três, quatro anos. Nós sabíamos o que ele tinha e chegou uma altura, em maio do ano passado, que nos foi transmitido que no prazo máximo de 6-8 meses seria provável a necessidade de diálise devido à progressão da doença ou, em alternativa, teria de ser transplantado. Na altura de decidir quem faria o transplante, eu ofereci-me, até porque o Rodrigo tem uma grande proximidade comigo”, refere Funk.

Apesar de qualquer pessoa poder doar, desde que reúna as condições necessárias, a probabilidade de um familiar direto ser compatível com um filho é maior e permite evitar a lista de espera. “Antes de eu estar definido como dador, o Rodrigo esteve em lista ativa de espera, mas havia um pormenor que me fazia confusão. Quando aparece um órgão compatível, a colheita acontece a uma determinada hora e a chamada para o paciente pode ser feita a meio da noite, isso não me agradava porque a partir de uma certa altura ia-me deitar com aquela ansiedade: será que vai ser hoje? Depois dos exames estarem feitos e da cirurgia estar marcada, podemos planear muito melhor a situação e isso para mim foi um grande alívio. Mesmo estando a cirurgia agendada, se no dia anterior aparecesse um dador cadáver, o protocolo obrigava a que fosse o dador cadáver em detrimento de meu rim”, esclarece o jogador do CDUP.

A recolha do órgão e o transplante realizaram-se no Hospital de Sto. António, no Porto, no mesmo dia, mas não à mesma hora. Miguel teve alta três dias depois e foi para casa pelo próprio pé. Rodrigo esteve cerca de 10 dias em isolamento nos cuidados intensivos para evitar qualquer tipo de infeção.

A inclusão de um novo órgão implica um risco de rejeição e apesar do dador ser compatível, “só na prática é que sabemos se o é ou não”, realça o pai.

Após a alta médica, Rodrigo regressou a casa, começou a ter contacto com mais pessoas, a mexer-se mais e a poder sair à rua. Durante dois meses teve consultas duas vezes por semana e gradualmente voltou à escola e à vida normal, só falta o desporto.

“Num transplante, os rins que não funcionam ou funcionam mal não são retirados, é acrescentado um terceiro rim, e é colocado na zona da frente, na barriga, e convém ter algum cuidado no início porque o órgão está muito à superfície. O polo não é um desporto fácil e exige muito contacto, porém, ele é guarda redes, o que facilita um pouco o processo”, justifica Miguel Freitas.

“A relação já era forte, assim continua e continuará”

Olhando para trás, recorda o momento em que decidiu doar o rim ao filho e o que lhe passou pela cabeça enquanto pai: “É algo imediato, não houve tempo para uma indecisão. Foi instintivo, ofereci-me sem qualquer problema ou sentimento de obrigatoriedade. Acho que qualquer pai faria isto. Nós queremos sempre o melhor para os nossos filhos, é essa a função dos pais.”

Depois de uma intervenção tão delicada, pai e filho passaram a ter cuidados redobrados no dia a dia. Rodrigo toma medicação de manhã e à noite sempre a horas certas. Miguel, que agora só tem um rim, tem de ter alguns cuidados alimentares e, enquanto dador, passou a ser acompanhado regularmente por um médico.

O jogador do CDUP confessa que os dois fazem uma vida “perfeitamente normal” e conta, a título de curiosidade, que quem é fumador não pode ser dador de rim, uma informação que o surpreendeu, ainda que nunca tenha fumado.

Otimista por natureza, Miguel Freitas nem sequer equacionou que as coisas corressem mal. O jogador de 45 anos encara as adversidades de frente e destaca a postura do filho e da equipa hospitalar.

“O Rodrigo, assim como eu, teve uma atitude positiva e acho que isso faz toda a diferença, para além de que fomos muito bem tratados por toda a equipa do Hospital de Santo António/ Centro Materno Infantil do Norte, foram fantásticos”, elogia.

Questionado sobre a influência deste acontecimento na relação com o filho, o atleta admite que haja uma proximidade maior devido ao elemento comum que os une, porém, assegura que “a relação já era forte, assim continua e continuará”.

Miguel Freitas conclui dizendo que “se com esta entrevista conseguir sensibilizar alguém, um pai, mãe, amigo, amigo do amigo, levando-a a afirmar ‘eu também posso ser dador de alguém próximo ou um perfeito desconhecido’, então será perfeito”.

 

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