Vasco Gaspar: “Valerá a pena dificultar o acesso a nadadores em competições mais populares?”

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Vasco Gaspar, um dos melhores atletas de sempre de águas abertas, é a favor dos fatos isotérmicos, mas mostra-se renitente à obrigatoriedade dos mesmos, já que torna a modalidade “ainda mais elitista e restritiva”.

Hoje realizou-se em Sesimbra a Travessia da Baía com a temperatura da água a 17ºC e muitos participantes ficaram impedidos de nadar por não terem fato.

Saiba a opinião de Vasco Gaspar, um artigo exclusivo para o Chlorus:

“As águas abertas são modalidade olímpica desde os Jogos de 2008 em Beijing na China. Desde aí, a modalidade evoluiu muito em termos de normas e de regras, principalmente pela Federação Internacional de Natação Amadora (FINA). Estas alterações deveram-se umas à evolução natural da disciplina, outras por motivos de segurança dos nadadores, muitas vezes após o acontecimento de acidentes.

O exemplo mais claro desta última questão teve que ver com a morte do americano Francis Crippen, que morreu em 2010 enquanto nadava numa Taça do Mundo de 10km em Fujairah, nos Emirados Árabes unidos.

Na altura foi um grande choque, era um nadador de alto nível, experiente, com várias medalhas, naquela prova estava inclusive nos primeiros lugares.

A água estava acima dos 30ºC e as más condições de visibilidade que se faziam sentir fizeram com que, só à chega do seu colega americano, se tivesse dado pela falta do nadador que estava à frente e já devo ter chegado. Acabou por ser encontrado já morto, no fundo do mar por mergulhadores, a 500m da costa, perto da chegada da prova.

Esta morte trágica levou a que a FINA fosse pressionada a aumentar as regras de segurança.

A primeira medida tomada pela FINA e pela LEN, logos nas competições internacionais seguintes, foi que cada nadador deveria de ter um responsável que se deveria controlar que o nadador estava bem durante a prova e responsabilizar-se pelo mesmo. Esta medida que desresponsabilizava totalmente as entidades organizativas, estava obviamente destinada ao fracasso, não só pela total inversão do ónus da responsabilidade, mas também pela impraticabilidade da mesma, uma vez que em provas com 10km com voltas de 2.5km é impossível que alguém, sem um barco, consiga visualizar o seu nadador durante todo o percurso, muito menos responsabilizar-se pela sua segurança.

Em provas internacionais, o problema chegava a agravar-se porque muitas vezes a comitiva era composta por um treinador para 3 nadadores; sendo que o treinador só se podia responsabilizar por um deles, agravava o facto de o treinador estar a maioria das vezes no pontão, de onde nem sempre se consegue ver todo o percurso e quando se consegue é impossível identificar os nadadores àquela distância.

Esta medida acabou por cair em desuso e o que acabou por acontecer foi uma maior atenção para as questões de vigilância e segurança, com a existência de percursos com voltas mais pequenas e um maior número de embarcações na água, um maior investimento nos meios médicos presentes, a exigência de protocolos e equipas de segurança, com planos de evacuação e de emergência médica.

Outra medida tomada foi a estipulação de limites máximos e mínimos de temperatura. Segundo a regra OW 5.5, o limite máximo são 31ºC e o mínimo são 16ºC; e estes devem ser medidos 2h antes do início da prova no meio do percurso a uma profundidade de 40cm.

No ano passado, a FINA alterou as regras e, a partir de janeiro de 2017, segundo as novas regras (BL 8.5), a utilização de “fatos isotérmicos” (até aqui não permitidos) passou a ser opcional entre os 18 e 20ºC e passou a ser obrigatória abaixo dos 18ºC. Estes fatos não só ajudam a manter a temperatura corporal como ajudam na flutuabilidade.

Quem já nadou provas de 10km com a água a 16 ou 17ºC, em alta intensidade, sabe bem o desgaste que o corpo sofre e a propensão à hipotermia, que pode, em última instância, ser fatal.

Hoje realizou-se em Sesimbra a habitual e já antiga Travessia da Baía. Esta é uma prova de cerca de 1500m que se realiza anualmente no dia 5 de outubro, já desde 1946. Tem uma partida para os nadadores federados e outra para os nadadores não federados. Foi a primeira vez que esta travessia se realizou com as novas regras. A temperatura medida era 17ºC e portanto obrigava à utilização dos conhecidos fatos isotérmicos. Muitos dos nadadores não iam preparados para isso e, apesar de existir no recinto um stand da Aqualoja que permitia alugar este tipo de fatos, muitos acabaram por não conseguir fato e não puderam nadar. Acontece que os únicos nadadores que tiveram que se sujeitar às regras e que foram impedidos de nadar, foram os nadadores federados.

Pode levantar-se a questão da igualdade de direitos entre os nadadores federados e não federados. Está certo que os nadadores federados, em provas oficiais, têm de se reger pelas regras FINA. Todos acreditamos que a segurança é o mais importante. Se estas regras foram criadas com o intuito de aumentar a segurança e proteger os praticantes, a segurança, e consequentemente as regras, deveriam ser aplicadas a todos.

Já tendo eu feito inúmeras competições com condições extremamente difíceis (algumas delas bastante sofridas, com hipotermia e com passagens por ambulâncias), sou totalmente a favor da utilização destes fatos. Quanto à obrigatoriedade dos mesmos fico mais renitente, uma vez que estamos a tornar a modalidade ainda mais elitista e estamos a restringi-la apenas àqueles que têm cerca de 300€ para gastar na aquisição de um fato, ou alugá-lo.

Mas penso que a verdadeira questão prende-se com a pertinência da aplicação destas regras para provas mais curtas. Estas regras foram criadas a pensar em provas de 10km. Fará sentido aplicar estas mesmas regras a provas de 1500m? Não! O facto de terem distâncias diferentes e terem por conseguinte durações diferentes, faz com que os mecanismos fisiológicos também sejam diferentes. Não creio que alguém julgue haver grande risco para a saúde de um atleta nadar 1500m com a água a 17ºC.

A título de exemplo posso dizer que já vi mais atletas a saírem mal da água depois de uma Taça do Mundo de 10km em Setúbal com a água a 19ºC, do que atletas a saírem mal da água depois dos 1500m da Travessia da Baía, mesmo com a água a 16ºC.

Em várias provas internacionais em que se fechava o olho ao termómetro, a temperatura oficial é alterada consoante aquilo que se pretende. Deveria a equipa de arbitragem ter feito o mesmo? Penso que não. Neste caso, a equipa de arbitragem neste cumpriu a sua tarefa e fez cumprir as regras. A verdadeira questão é sobre a aplicabilidade destas regras em provas mais populares e com distância mais curta.

Tratando-se de uma prova curta, até à edição de hoje, tolerada com facilidade por todos que nela participam sem grandes problemas de saúde envolvidos, põe-se a questão: Deveriam as entidades responsáveis (ANL e FPN) criar normas suas, específicas para estas provas mais curtas de forma a que a modalidade possa continuar a crescer em número de praticantes? Valerá a pena dificultar o acesso a nadadores nestas competições mais populares, que, não se tratando sequer de um campeonato nacional, não têm sequer impacto sequer na avaliação dos nadadores dito de alto-rendimento?

Créditos da foto: Armando Monteiro

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